Leo Kanner é uma das figuras mais marcantes da psiquiatria infantil do século XX e uma referência central para a compreensão inicial do autismo. Médico austríaco radicado nos Estados Unidos, foi ele quem, em 1943, publicou a primeira descrição clínica sistematizada do que chamou de “autismo infantil precoce”, texto que se tornaria um dos pilares da história do diagnóstico.

A Clínica Antes da Era da Evidência
Quando Kanner começou seu trabalho, a psiquiatria infantil ainda dava seus primeiros passos. Não havia testes padronizados, estudos longitudinais ou métodos quantitativos como os que conhecemos hoje. A medicina se apoiava majoritariamente na observação clínica aprofundada, e nessa dimensão Kanner se destacou. Seus textos descritivos apresentavam um rigor raro para a época, reunindo padrões comportamentais repetidos em diferentes crianças: isolamento social, dificuldades de comunicação, apego intenso à rotina e resistência a mudanças.
A Visão de Autismo como Condição Distinta
Kanner foi o primeiro a afirmar que esses comportamentos não se tratavam de um simples “retraso mental” ou de “psicose infantil”, mas sim de algo específico e reconhecível. Essa percepção foi histórica: o autismo passou a existir como entidade clínica. Ele separou o transtorno de outras condições psiquiátricas, contribuindo decisivamente para que, décadas depois, os manuais diagnósticos definissem o que hoje chamamos de Transtorno do Espectro Autista (TEA).
O Legado da Teoria da “Mãe Geladeira”
Entretanto, a trajetória de Kanner não foi isenta de erros. Em meio ao domínio das teorias psicanalíticas, ele sustentou a hipótese de que o autismo poderia ter origem na frieza afetiva dos pais, especialmente das mães — a chamada teoria da “mãe geladeira”. Essa interpretação, que não contava com evidências científicas robustas, marcou negativamente muitas famílias e contribuiu para anos de estigma. Somente décadas depois, com o avanço da genética, neurobiologia e estudos longitudinais, a ciência mostrou claramente que o autismo é uma condição neurodesenvolvimental, com raízes biológicas e não emocionais.
Da Observação Clínica à Psiquiatria Baseada em Evidências
O paradoxo da obra de Kanner é que ele foi um pioneiro ao observar padrões objetivos, mas também filho de seu tempo ao explicar esses padrões por interpretações psicogênicas. Hoje, a psiquiatria baseada em evidências evoluiu para relacionar o autismo a fatores genéticos, variações neuroanatômicas e mecanismos cerebrais do desenvolvimento. Testes, escalas padronizadas, ressonâncias, estudos populacionais e análises genômicas transformaram a forma de diagnosticar e compreender o TEA.
O Legado Histórico
Mesmo com críticas e revisões de suas teorias, Leo Kanner permanece uma referência fundamental. Ele inaugurou a observação científica organizada do autismo e fundou também o primeiro serviço de psiquiatria infantil dos Estados Unidos. Sua obra abriu a porta para que o autismo deixasse de ser uma ideia vaga e passasse a ser uma categoria clínica com identidade própria.
Em síntese, o legado de Kanner é duplo:
- Fundamental na descrição e sistematização do autismo;
- Limitado pelas hipóteses interpretativas da época, posteriormente superadas pela ciência moderna.
Ao revisitar sua obra, vemos não apenas a história de um pesquisador, mas a própria história da psiquiatria caminhando em direção ao que hoje entendemos como ciência do desenvolvimento humano baseada em evidências.
